terça-feira, março 1

Democracia tem dono?

É engraçado (ou triste, dependendo do gosto do freguês): os Estados Unidos e os países europeus ocidentais passaram a vida, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, dando sermões sobre a democracia, seus méritos e sua imperiosa necessidade, para o resto do planeta.
Bom, aí veio a onda de redemocratização na América Latina, nos anos 80. Em seguida, nos 90, na Europa Oriental e até na Rússia, ainda que o teor de democracia na Rússia seja no mínimo discutível.
Ficavam faltando, basicamente, países da Ásia, a África e o Oriente Médio praticamente inteiro, com a exceção de Israel, ainda que também aqui haja polêmica, mas não é o assunto de hoje.
Agora, por fim, países árabes começam a sentir os efeitos de uma gigantesca onda democrática, que já varreu duas ditaduras (Tunísia e Egito), sitiou outra (Líbia) e sopra também em vários países mais.
Logo, você aí, com raciocínio lógico, haverá de pensar que o Ocidente (EUA e Europa Ocidental para ser específico) estão felizes da vida, festejando e assumindo a paternidade da democracia, certo?
Sua lógica é lógica, mas é errada: o Ocidente foge com todo o vigor do patrocínio da democracia.
É o paradoxo, pelo menos em relação à Líbia, que ficou evidente em todas as intervenções na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU e nas entrevistas coletivas concedidas pelos chanceleres das principais potências ocidentais.
"O Ocidente não tem todas as respostas", disparou, por exemplo, Hillary Clinton. É óbvio mas não é o que os Estados Unidos diziam ainda recentemente, no governo George Walker Bush, por exemplo. Chegaram até a anunciar a invasão do Iraque como exportação da democracia para o mundo árabe.
Reforça o ministro italiano Franco Frattini, até anteontem o maior aliado da Líbia de Gaddafi: "Não pretendemos ditar a mudança [na Líbia]. Queremos, ao contrário, que a democracia seja de total propriedade do povo líbio".
Frattini chega a falar em modelos de democracia, como se o Ocidente admitisse que pode haver mais de um e não apenas o que a esquerda de antigamente chamava de "democracia burguesa".
Não é difícil explicar esse receio de aparecer como donos da "nova Líbia", como a denominou Frattini ou de um eventual "novo Oriente Médio", como se especula que possa emergir da sequência de rebeliões em curso ou já semi-vitoriosas (semi, porque duas ditaduras caíram mas ainda não se estabeleceu a democracia).
Primeiro, há o fato de que o Ocidente adotou a teoria de que só havia duas hipóteses possíveis no Oriente Médio: ou as ditaduras amigas, como a do Egito, ou as ditaduras inimigas, caracterizadas por regimes fundamentalistas islâmicos, tipo Irã. É óbvio que a escolha sempre foi pelas ditaduras amigas.
As revoltas fizeram ruir essa teoria. Agora, diz Hillary, houve uma convergência entre valores e interesses [dos países ocidentais]. Ficou demonstrado, sempre segundo ela, que "a democracia é mais estável, mais pacífica e, no fim das contas, mais próspera".
Segunda razão: ao atribuir a "propriedade" da mudança aos próprios árabes, o Ocidente coincide com o espírito de recuperação do orgulho árabe que marca as rebeliões. Não têm sido anti-ocidentais mas tampouco seguiram pautas ditadas pelo mundo rico. Não é um terreno fértil para novos sermões.
Clóvis Rossi
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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