quinta-feira, agosto 4

POEMA EM LINHA RETA - Fernando Pessoa

    Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
    Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
    E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
    Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
    Indesculpavelmente sujo,
    Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
    Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
    Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
    Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
    Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
    Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
    Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
    Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
    Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
    Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
    Para fora da possibilidade do soco;
    Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
    Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
    Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
    Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
    Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
    Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
    Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
    Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
    Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
    Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
    Ó príncipes, meus irmãos,
    Arre, estou farto de semideuses!
    Onde é que há gente no mundo?
    Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
    Poderão as mulheres não os terem amado,
    Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
    E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
    Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
    Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
    Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
    Álvaro de Campos

Um pouco de Juvenal Arduini...


"O ser humano é ambivalente. Conhecido e estranho, próximo e distante, transparente e opaco. O ser humano canta e protesta, dança e agride, congrega e dispersa. O ser humano é diáfano e indevassável, lúcido e nebuloso, acessível e inabordável. Circula pelas ruas, mas também recolhe-se na intimidade. O ser humano expande-se festivamente e tranca-se amargamente. É lógico e ilógico.
O ser humano é linguagem pluriforme. Fala e silencia, grita e emudece, gargalha e enclausura-se. O ser humano é palavra ofertada e palavra recusada. E recusar a palavra aos outros é rejeitá-los. O ser humano é fonte exuberante de comunicação, e também núcleo rígido de incomunicação. Comunicabilidade e incomunicabilidade são duas faces do existir humano. O ser humano é diálogo fecundo e monólogo estéril.
O ser humano é torrente de amor. Amar é expressão de vida, êxtase, paixão, impulso vital. É Eros. Mas o ser humano pode também gotejar ódio feroz. O ódio é filho de Tânatos. O ser humano é mistura de Eros e Tânatos. Quando o amor se perverte, converte-se em ódio implacável. Seres que se amavam apaixonadamente passam a odiar-se rancorosamente. E o “amante” chega a assassinar o  “ amado”.
O ser humano é fértil em criações. Cria vida, saúde, pão, paz, ciência, tecnologia. Mas o ser humano é também niilista. Incinera o mundo. Basta ver a guerra. O ser humano constrói maravilhas, mas também pode arrasá-las. Planta a semente e desintegra a germinação.
Pai luta para ter filho; e pai estupra a carne de sua carne. Mãe sangra para sustentar o filho; e mãe abandona ou estrangula o recém-nascido.
O ser humano sente necessidade de convivência e solidariedade. Mas é também anti-social. A discriminação, o fanatismo e o sectarismo esfiapam o tecido da sociabilidade. O ser humano fascina. As pessoas seduzem pelo amor e pela beleza, pela inteligência e pela bondade. Mas também as pessoas intimidam e ameaçam com violências e assassinatos. O ser humano cativa com afeição e algema com servidão.
O ser humano é águia altiva que recorta horizontes vastos. E é também verme que rasteja. O ser humano empolga pelos avanços científicos e históricos, e frustra pela vulgaridade e pelo aviltamento. A fronte do ser humano roça a face de Deus, mas seus passos escorregam na lama. O ser humano dignifica-se pela fidelidade e abastarda-se pela traição.
O ser humano é paradoxo antropológico. Muitos exaltam a grandeza do ser humano. Outros muitos lhe estigmatizam a vileza. O ser humano não se define por conceito matemático. É seqüência de contrastes. É campo de “joio e trigo”. É ser em devenir. Pode acertar e pode errar. Pode fazer-se e desfazer-se. Mas abriga potencial para re-fazer-se. O ser humano é capaz de eliminar o ódio, a perversidade, a destruição. E pode propulsar energias criadoras inteligentes que amadureçam a consciência, redirecionem a liberdade, cultivem o amor, promovam a justiça, efetivem a solidariedade e assumam a responsabilidade.
O ser humano é oscilante. É paradoxo. Avança e recua, atrai e expulsa, ergue-se e recai, edifica e pulveriza, arrisca-se e amoita-se. O ser humano não é apenas herança. É decisão. É gênese existencial. É conquista de todos os dias. Lidar com o ser humano é lidar com o paradoxo."

Só sei que nada sei


Saber que nada se sabe, é o passo mais importante de toda filosofia de Socrátes e uma das maiores contribuições para a arte do filosofar. Embora muitos filósofos façam oposição a esse fundamental mestre do pensamento ocidental, é de se reconhecer o grande mérito de sua tomada de consciência sobre a própria finitude do ser humano, a fronteira entre cada homem e aquilo que ele chamaria de ente oculto.
O mestre de Platão dá a essa experiência, do ente fora de alcance, o sutil nome de ignorância, afinal tal experiência revela o próprio saber humano. Saber-se ignorante é ter contato com a essência da verdade, a qual implica necessariamente na Verdade Absoluta, o que também poderíamos chamar de Ente ou Substância Suprema, Absoluto ou Uno.
Uma vez que tomamos consciência deste caráter metafísico da verdade, nos livramos de qualquer pretensão de rete-lá, hegemoniza-la, ou termos plena posse dela. O que nos deixa mais livres para contemplar a beleza de um pensamento que se submete à urgências, prazos e objetivos estagnantes. Diante de tal possibilidade é prazerosamente viável uma filosofia desprovida de qualquer proselitismo.
         A conhecimento da própria ignorância nos faz olhar com mais solicitude e critério para a realidade e para os objetos. Aquele que não se sabe desconhecedor ouve em tudo uma eco de si próprio, ao invés de se abrir para os sentidos próprios de cada aspecto que se desvela a sua frente. A autêntica reflexão busca saber o que as coisas realmente são e não o que desejamos que elas venham a ser.

A ESTÉTICA FILOSÓFICA


A palavra estética vem do grego aisthesis e significa "faculdade de sentir", "compreensão pelos sentidos", "percepção totalizante". Sendo, em primeiro lugar, individual, concreta e sensível, oferece-se aos nossos sentidos; em segundo lugar, sendo uma interpretação simbólica do mundo, sendo uma atribuição de sentido ao real e uma forma de organização que transforma o vivido em objeto de conhecimento, proporciona a compreensão pelos sentidos; ao se dirigir, enquanto conhecimento intuitivo, à nossa imaginação e ao sentimento, toma-se em objeto estético por excelência.
Do ponto de vista estritamente filosófico, a estética estuda racionalmente o belo e o sentimento que este desperta nos homens. Em especial, no período Clássico, a idéia do Belo desempenha importante papel. Todavia, a obra de Plotino sobre o belo possui uma tônica de misticismo que é pouco especulada nos tempos atuais; sente-se nela o desejo e o esforço de uma alma que quer se encontrar e ao mesmo tempo se perder no Uno universal e inefável. Esse arrebatamento da alma, esse êxtase foi que impressionou Bergson ao ler as Enéadas, o que explica o fato de o autor das Duas Fontes Ter colocado Plotino acima de todos os filósofos.

A Beleza, essa beleza que também é o Bem, deve ser colocada como primeira realidade. Imediatamente depois dela vem a inteligência, que é uma manifestação proeminente da Beleza. A Alma é bela mediante a Inteligência. As outras belezas, por exemplo as das ações e ocupações, provêm do fato de  a Alma imprimir nelas a sua Forma, a qual também é responsável por toda a beleza que há no mundo sensível, pois sendo um ente divino, um fragmento da Beleza primordial, ela torna belas todas as coisas que toca e domina, contanto que ela mesma participe da Beleza. (PLOTINO, 2002, p. 30).

Ao estudarmos Plotino em Estética, podemos verificar uma filosofia que quer ser síntese não repetitiva, ensina afirmando: o homem ou sua alma, deve se esforçar, livremente, para buscar o caminho da perfeição, alcançando a visão direta ou o caminho experencial com o Uno-Bem-Belo-Infinito, fonte e meta de tudo, portanto, também da alma. Esta, para alcançar este fim, deve se converter e se tornar noûs, mediante o retorno constante ao seu Princípio, autoconstituindo-se hispóstase pela visão pluralizada a partir da unidade absoluta e total com o Uno-Infinito. Esta experiência infinita faz com que a alma alcance a plenitude de sua liberdade, tornando-se consciência do que sempre foi, a saber, desde sua origem, parte do mundo do espírito.
E assim podemos afirmar concluindo, com Plotino, que o real nunca é a somatória de elementos de uma existência separada, múltipla, mas é essencialmente polaridade de termos que se sustentam, ou seja, unidade, no sentido mais absoluto do termo.