sábado, novembro 22

POEMA DOS DONS

Graças quero dar ao divino, labirinto de efeitos e causas, pela diversidade das criaturas que formam este singular universo, pela razão, que não deixará de sonhar com um plano para o labirinto, pela face de Helena e a perseverança de Ulisses, pelo amor, que nos deixa ver os outros como os vê a divindade, pelo firme diamante e água solta, pela álgebra, palácio de precisos cristais, pelas místicas moedas de Ângelo Silésio, por Schopenhauer, que talvez decifrou o universo, pelo fulgor do fogo, que nenhum ser humano pode olhar sem assombro antigo, pelo mogno, o cedro, o sândalo, pelo pão e o sal, pelo mistério da rosa que prodigaliza cor e não a vê, por certas vésperas e dias de 1955, pelos duros tropeiros que na planície fustigam os animais e a alva, pela manhã em Montevidéu, pela arte da amizade, pelo último dia de Sócrates, pelas palavras que no crepúsculo disseram de uma cruz a outra cruz, por aquele sonho do Islã que abarcou mil e uma noites, por aquele outro sonho do inferno, da torre do fogo que purifica e das esferas gloriosas, por Swedenborg, que conversava com os anjos nas ruas de Londres. Pelos rios secretos e imemoriais que convergem em mim, pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria, pela espada e a harpa dos saxônios, pelo mar, que é um deserto resplandecente e uma cifra de coisas que não sabemos e um epitáfio dos vikings, pela música verbal da Inglaterra, pela música verbal da Alemanha, pelo ouro que reluz nos versos, pelo inverno épico, pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos, por Verlaine, inocente como os pássaros, pelos prismas de cristal e o peso de bronze, pelas raias do tigre, pelas altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan, pela manhã no Texas, por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral e cujo nome, como ele houvera preferido, ignoramos, por Sêneca e Lucano de Córdoba ,que antes do espanhol escreveram toda a literatura espanhola, pelo geométrico e bizarro xadrez, pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce, pelo odor medicinal do eucalipto, pela linguagem, que pode simular a sabedoria, pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado, pelo hábito, que nos repete e nos confirma como um espelho, pela manhã, que nos proporciona a ilusão de um começo, pela noite, sua treva e sua astronomia, pelo valor e a felicidade dos outros, pela pátria, sentida nos jasmins ou numa velha espada, por Whitmann e Francisco de Assis, que já escreveram o poema, pelo fato de que o poema é inesgotável e se confunde com a soma das criaturas e jamais chegará ao último verso e varia segundo os homens, por Francisco Haslam, que pediu perdão aos filhos por morrer tão devagar, pelos minutos que precedem o sono, pelo sono e pela morte, esses dois tesouros ocultos, pelos íntimos dons que não enumero, pela música, misteriosa forma do tempo.
Jorge Luis Borges

O TEMPO



"O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor.

Embora, inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento.

Sem medida que eu conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza.

Não tem começo, não tem fim.

Rico não é o homem que coleciona e se pesa num amontoado de moedas,

nem aquele devasso que estende as mãos e braços em terras largas.

Rico só é o homem que aprendeu piedoso e humilde a conviver com o tempo,

aproximando-se dele com ternura.

Não se rebelando contra o seu curso.

Brindando antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira.

O equilíbrio da vida está essencialmente neste bem supremo.

E quem souber com acerto a quantidade de vagar com a de espera que deve pôr nas coisas,

não corre nunca o risco de buscar por elas e defrontar-se com o que não é.

Pois só a justa medida do tempo, dá a justa 'atudeza' das coisas."

Raduan Nassar

Pensamentos da madrugada do dia 19/10/08






Acordar os mortos imortalizados!




Ouçam...o silêncio daqueles que já se foram!


Silêncio! notem os sussurros ao seu redor...


São eles....aqueles que já calaram-se na sua programada hora!


Mas se não dizem nada...como poderias escutá-los?


Lendo e sentindo na grafia imortalizada pelo tempo que não pára...


Não cessa...e não envelhece!


Dessa podes ouví-los...suas aflições, paixões, medo e emoções vividas


Em toda uma vida que não se soube aproveitar plenamente...


Parem! escutem o seu silêncio,


DESPERTEM! contra o relógio biológico que não os poupa um segundo...


APROVEITEM! enquanto jovens, velhos e na idade extrema...


Vivenciar cada momento de forma intensa...


É aprender que você pode acordar a qualquer momento,


E estar pronto para se imortalizar de sua própria vida.




CARPE DIEM

sexta-feira, julho 4

II CONGRESSO DE FILOSOFIA EM SÃO THOMÉ DAS LETRAS


HIPÁCIA DE ALEXANDRIA, A MULHER!



Hipácia de Alexandria

(c. 370 d.C - 415 d.C)


A cidade de Alexandria foi fundada por Alexandre, o Grande, no ano de 332 a.C, e logo se tornou o principal porto do norte do Egito. Localizada no delta do rio Nilo, numa colina que separa o lago Mariotis do mar Mediterrâneo, foi o principal centro comercial da Antigüidade. Seu porto foi construído com um imponente quebra-mar que chegava até a ilha de Faros, onde foi erguido o famoso Farol de Alexandria, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo.
Sua localização privilegiada, na encruzilhada das rotas da Ásia, da África e da Europa, transformou a cidade num lugar ideal para concentrar a arte, a ciência e a filosofia do Oriente e do Ocidente.
A Biblioteca de Alexandria foi construída por Ptolomeu I Soter no século IV a.C, e elevou a cidade ao nível de importância cultural de Roma e Atenas. De fato, após a queda do prestígio de Atenas como centro cultural, Alexandria tornou-se o grande polo da cultura helenística. Todo manuscrito que entrava no país (trazido por mercadores e filósofos de toda parte do mundo) era classificado em catálogo, copiado e incorporado ao acervo da biblioteca. No século seguinte à sua criação, ela já reunia entre 500 mil e 700 mil documentos. Além de ser a primeira biblioteca no sentido que conhecemos, foi também a primeira universidade, tendo formado grandes cientistas, como os gregos Euclides e Arquimedes.
Os eruditos encarregados da biblioteca eram considerados os homens mais capazes de Alexandria na época. Zenódoto de Éfeso foi o bibliotecário inicial e o poeta Calímaco fez o primeiro catálogo geral dos livros. Seus bibliotecários mais notáveis foram Aristófanes de Bizâncio (c. 257-180 a.C) e Aristarco da Samotrácia (c. 217-145 a.C).
Hipácia foi a última grande cientista de Alexandria. Nasceu em 370 d.C (?) -- os historiadores são incertos em diferentes aspectos da vida de Hipácia e a data de seu nascimento é debatida atualmente. Foi filha de Theon, um renomado filósofo, astrônomo, matemático e autor de diversas obras, professor da Universidade de Alexandria.Durante toda a sua infância, Hipácia foi mantida por seu pai em um ambiente de idéias e filosofia. Alguns historiadores acreditam que Theon tentou educá-la para ser um ser humano perfeito. Hipácia e Theon tiveram uma ligação muito forte e este ensinou a ela seu próprio conhecimento e compartilhou de sua paixão na busca de respostas sobre o desconhecido. Quando estava ainda sob a tutela e orientação do seu pai, ingressou numa disciplinada rotina física para assegurar um corpo saudável para uma mente altamente funcional.
Hipácia estudou matemática e astronomia na Academia de Alexandria. Devorava conhecimento: filosofia, matemática, astronomia, religião, poesia e artes. A oratória e a retórica, com grande importância na aceitação e integração das pessoas na sociedade da época, também não foram descuidadas. No campo religioso, Hipácia recebeu informação sobre todos os sistemas de religião conhecidos, tendo seu pai assegurado que nenhuma religião ou crença lhe limitasse a busca e a construção do seu próprio conhecimento.
Quando adolescente, viajou para Atenas para completar sua educação na Academia Neoplatônica, com Plutarco. A notícia se espalhou sobre essa jovem e brilhante professora, e quando regressou já havia um emprego esperando por ela, para dar aulas no museu de Alexandria, juntamente com aqueles que haviam sido seus professores.
Hipácia é um marco na História da Matemática que poucos conhecem, tendo sido equiparada a Ptolomeu (85 - 165), Euclides (c. 330 a. C. - 260 a. C.), Apolônio (262 a. C. - 190 a. C), Diofanto (século III a. C.) e Hiparco (190 a. C. - 125 a. C.).Seu talento para ensinar geometria, astronomia, filosofia e matemática atraía estudantes admiradores de todo o império romano, tanto pagãos como cristãos.
Aos 30 anos tornou-se diretora da Academia de Alexandria. Do seu trabalho, infelizmente, pouco chegou até nós. Alguns tratados foram destruídos com a Biblioteca, outros quando o templo de Serápis foi saqueado. Grande parte do que sabemos sobre Hipácia vem de correspondências suas e de historiadores contemporâneos que dela falaram. Um notável filósofo, Sinesius de Cirene (370 - 413), foi seu aluno e escrevia-lhe freqüentemente pedindo-lhe conselhos sobre o seu trabalho. Através destas cartas ficou-se a saber que Hipácia inventou alguns instrumentos para a astronomia (astrolábio e planisfério) e aparelhos usados na física, entre os quais um hidrômetro.
Sabemos que desenvolveu estudos sobre a Álgebra de Diofanto ("Sobre o Canon Astronômico de Diofanto"), que escreveu um tratado sobre as seções cônicas de Apolônio ("Sobre as Cônicas de Apolônio") e alguns comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo Ptolomeu. E em colaboração com o seu pai, escreveu um tratado sobre Euclides.
Ficou famosa por ser uma grande solucionadora de problemas. Matemáticos que haviam passado meses sendo frustrados por algum problema em especial escreviam para ela pedindo uma solução. E Hipácia raramente desapontava seus admiradores. Ela era obcecada pela matemática e pelo processo de demonstração lógica. Quando lhe perguntavam porque nunca se casara ela respondia que já era casada com a verdade.
A tragédia de Hipácia foi ter vivido numa época de luta entre o paganismo e o cristianismo, com este a tentar apoderar-se dos centros importantes então existentes. Hipácia era pagã, fato normal para alguém com os seus interesses, pois o saber era relacionado com o chamado paganismo que dominou os séculos anteriores e era alicerçado nas tradições de liberdade de pensamento.
O cristianismo foi oficializado em 390 d.C, e o recém nomeado chefe religioso de Alexandria, o bispo Cirilo, dispôs-se a destruir todos os pagãos assim como seus monumentos e escritos.
Por causa de suas idéias científicas pagãs, como por exemplo a de que o Universo seria regido por leis matemáticas, Hipácia foi considerada uma herética pelos chefes cristãos da cidade. A admiração e proteção que o político romano Orestes dedicou a Hipácia pouco adiantou, e acirrou ainda mais o ódio do bispo Cirilo por ela e, quando este tornou-se patriarca de Alexandria, iniciou uma perseguição sistemática aos seguidores de Platão e colocou-a encabeçando a lista.
Assim, numa tarde de 415 d.C, a ira dos cristãos abateu-se sobre Hipácia. Quando regressava do Museu, foi atacada em plena rua por uma turba de cristãos enfurecidos, incitados e comandados por "São" Cirilo. Arrastada para dentro de uma igreja, foi cruelmente torturada até a morte e ainda teve seu corpo esquartejado (dilacerado com conchas de ostra, ou cacos de cerâmica, consoante as versões existentes) e queimado.O historiador Edward Gibbon faz um relato vívido do que aconteceu depois que Cirilo tramou contra Hipácia e instigou as massas contra ela: "Num dia fatal, na estação sagrada de Lent, Hipácia foi arrancada de sua carruagem, teve suas roupas rasgadas e foi arrastada nua para a igreja. Lá foi desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor, e sua horda de fanáticos selvagens. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas".
O estúpido episódio da morte de Hipácia é considerado um marco do fim da tradição de Alexandria como centro de ciências e cultura. Pouco depois, a grande Biblioteca de Alexandria seria destruída e muito pouco do que foi aquele grande centro de saber sobreviveria até os dias de hoje.
Enrico Riboni descreve os motivos e as conseqüências dessa ação fanática dos religiosos: "a brilhante professora de matemática representava uma ameaça para a difusão do cristianismo, pela sua defesa da Ciência e do Neoplatonismo. O fato de ela ser mulher, muito bela e carismática, fazia a sua existência ainda mais intolerável aos olhos dos cristãos. A sua morte marcou uma reviravolta: após o seu assassinato, numerosos pesquisadores e filósofos trocaram Alexandria pela Índia e pela Pérsia, e Alexandria deixou de ser o grande centro de ensino das ciências do mundo antigo. Além do mais, a Ciência retrocederá no Ocidente e não atingirá de novo um nível comparável ao da Alexandria antiga senão no início da Revolução Industrial. Os trabalhos da Escola de Alexandria sobre matemática, física e astronomia serão preservados, em parte, pelos árabes, persas, indianos e também chineses. O Ocidente, pelo seu lado, mergulhará no obscurantismo da Idade Média, do qual começará a sair somente mais de um milênio depois. Em reconhecimento pelos seus méritos de perseguidor da comunidade científica e dos judeus de Alexandria, Cirilo será canonizado e promovido a Doutor da Igreja, em 1882."
E Carl Sagan nos acrescenta: "Há cerca de 2000 anos, emergiu uma civilização científica esplêndida na nossa história, e sua base era em Alexandria. Apesar das grandes chances de florescer, ela decaiu. Sua última cientista foi uma mulher, considerada pagã. Seu nome era Hipácia. Com uma sociedade conservadora à respeito do trabalho da mulher e do seu papel, com o aumento progressivo do poder da Igreja, formadora de opiniões e conservadora quanto à ciência, e devido à Alexandria estar sob domínio romano, após o assassinato de Hipácia, em 415, essa biblioteca foi destruída. Milhares dos preciosos documentos dessa biblioteca foram em grande parte queimados e perdidos para sempre, e com ela todo o progresso científico e filosófico da época."


Frases de Hipátia

"Governar acorrentando a mente através do medo de punição em outro mundo é tão baixo quanto usar a força."

"Todas as religiões dogmáticas formais são falaciosas e nunca devem ser aceitas como palavra final por pessoas que respeitem a si mesmas."

"Ensinar superstições como uma verdade absoluta é uma das coisas mais terríveis."


Citações sobre Hipátia

Sócrates, o Escolástico (em ' História Eclesiástica')
"Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipátia, filha do filósofo Theon, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos de seu tempo. Tendo progredido na escola de
Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber seus ensinamentos."

Descrição da morte de Hipátia, pelo historiador
Edward Gibbon:
"Num dia fatal, na estação sagrada de Lent, Hipácia foi arrancada de sua carruagem, teve suas roupas rasgadas e foi arrastada nua para a igreja. Lá foi desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor, e sua horda de fanáticos selvagens. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas, e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas".

Hesíquio, o hebreu, aluno de Hipátia:
“Vestida com o manto dos filósofos, abrindo caminho no meio da cidade, explicava publicamente os escritos de
Platão e de Aristóteles, ou de qualquer filósofo a todos os que quisessem ouvi-la... Os magistrados costumavam consultá-la em primeiro lugar para administração dos assuntos da cidade”.

Trecho de uma carta de Senésio de Cirene , aluno de Hipátia:
“Meu coração deseja a presença de vosso divino espírito que mais do que tudo poderia adoçar minha amarga sorte. Oh minha mãe, minha irmã, mestre e benfeitora minha! Minha alma está triste. Mata-me a lembrança de meus filhos perdidos... Quando receber notícias vossas e souber, como espero, que estás mais feliz do que eu, aliviar-se-ão pelo menos a metade de minhas dores”.

domingo, janeiro 20

Paulo Freire em Dose Única!!!



"Sou professor a favor da decência contra o despudor,

a favor da liberdade contra o autoritarismo,

da autoridade contra a licenciosidade,

da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda.

Sou professor a favor da luta constante

contra qualquer forma de discriminação,

contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais.

Sou professor contra a ordem capitalista vigente

que inventou esta aberração: a miséria na fartura.

Sou professor a favor da esperança

que me anima apesar de tudo.

Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza.

Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática,

boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar,

se não brigo por este saber,

se não luto pelas condições materiais necessárias

sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar

e de já não ser testemunho que deve ser de lutador pertinaz,

que cansa, mas não desiste."

(Paulo Freire)

terça-feira, janeiro 8

Filósofos de gabinete, filósofos de jardim


Argumentava que a filosofia se verifica na primazia do interesse cognitivo, na escolha de uma construção, de uma imagem do mundo, num princípio indutivo, auxiliado por várias outras operações lógicas e matemáticas que a teoria da cognição contemporânea tem observado e estudado cada vez mais, fazendo lentamente dilatar e modificar a compreensão do nosso potencial racional e cognitivo.Vamos descobrindo que nossos cálculos, nossas induções e apontamentos, são superáveis em outros momentos do tempo, que nossa lógica evolui cada vez mais (desde que nos esforcemos, é claro) e que somos capazes de detectar erros, aprofundando via atenção, assuntos que não têm um limite estabelecido, conhecido. É a forma como evolui a filosofia, a consciência.Em 1998 eu estudava um detalhe meditando sobre a obra do filósofo francês Alain Badiou, quanto ao "status lógico do procedimento de antecipação de hipóteses (pré-juízos) para gerar o conhecimento". Estava já bastante ciente da quantidade de imaginação, de "livre lance de dados" (pré-lógicos ou a-lógicos), de "invenção fortuita do caminho"- entravam no amálgama do que chamamos conhecimento, na formação e evolução da consciência. Achava naquela época que este era o atual "problema da indução", já enunciado por Popper, quando passamos a induzir pontos, "premissas", que logicamente e a priori não se justificam, não se encontram, não são possíveis.Passava a ver, desde então, que o conhecimento edificava e justificava a pessoalidade, o sujeito, mesmo havendo pontos "exteriores" de apoio. Em resumo, o conhecimento estava ancorado numa vida, e dali vinha sua lógica. Na época, minhas esperanças com a filosofia eram a de ancorar numa atividade lógica.Do que seria capaz essa vida, o sujeito, para amparar suas vontades, ou em outras palavras, sua opinião, sua doxa natural, como ele acha que são as coisas, ou a que sua intuição natural o leva a crer e induzir, é uma conversa extensa. É que Paul Feyerabend chamava de vale-tudo.Tenho descoberto por meio dessas reflexões que a ciência - o estar ciente, a maneira de ver as coisas, de nomear e estruturar o mundo, a consciência praticada pelo indivíduo - é um assunto sujeitual, individual, único. Ainda me interesso pela defesa de um organograma para a filosofia, mas não de um tipo que procura enunciados finais, fixos, sobre a realidade. Pelo contrário, interessa-me a argumentação de um "estatuto" para a filosofia embasado justamente na observação da inexistência de pontos finais, moldes fixos, padrões recorrentes e nivelamentos.Parece que os padronamentos são sempre forçosos.
Esta perspectiva elabora portanto uma noção diversa sobre o conhecimento. Espécie de "construção firme, em terreno incerto", ela parece evoluir negando, estruturar - negando. Nela não se acredita na possibilidade de apontamentos definitivos (juízos de valor) à realidade, mas se mantém a idéia de que tais apontamentos são, na verdade, absurdos perante a lógica-crítica. Se são propostos apontamentos, isso é feito por mecanismos indutivos, pré-lógicos ou a-lógicos. Eles são sempre proposições sujeituais, não-objetivas, ou seja, partem de sujeitos ou indivíduos. A "objetividade" proposta (e para isso temos vários mecanismos como argumentação, contextuação, necessidade, repetição, etc) parece ser sempre meio.Assim, na filosofia, na vida, onde quer que haja conceitos - idéias -, as proposições são sempre sujeituais. Partem do indivíduo.Isto significa ademais, que não existe objetivo pré-concebido na vida. Tudo depende do apontamento. Quem o faz é o sujeito. E ele não é realmente obrigado a fazê-lo. Pode querer por exemplo, permanecer "vazio", cético e crítico. E parece haver maneiras criativas de sê-lo. Um exemplo é Sócrates, que dizia nada saber.
Nietzsche observou: "estamos inclinados a afirmar por princípio, que sem um deixar valer as ficções lógicas, (...) o homem não poderia viver".
Ficções lógicas são imaginações, delírios ensaístas do ser humano, pré-juízos. Constantes antecipações mentais.Nietzsche fora genial ao perceber que sem essas ficções lógicas (vontades, imaginação, inclinações, buscas, sonhos), nossa aventura com o conhecimento, com a vida, não seriam possíveis. Elementos a-lógicos (um tipo de ilusão), sonhos e vontades, parecem compor parte do material indispensável para a edificação e evolução do conhecimento e da consciência, proporcionando-nos seu funcionamento. Sem tais elementos, é mesmo difícil imaginar a vida. As ficções são altamente individuais.
Considero portanto, que a consciência se constitui através de duas maneiras, geralmente consideradas. Ela pode manifestar-se como consciência crítica, cética ou analítica, em geral anti-dogmática, sendo a epoché - suspensão de juízos de valor - o máximo a que conseguimos chegar com este tipo de investida. (Eu costumava chamar isso de "lógica pura").Segundo esta perspectiva, quem quer que se aventure a pronunciar algo estará absolutamente em erro, visto que a estruturação cognitiva sempre está mesclada de pré-juízos, vontades, antecipações, forçamentos.Este tipo de filosofia todavia, parece empreender seu conhecimento por vigília, por negação e reprimenda aos saberes poéticos, tornando-se ocupada em vigiar suas próprias construções (auto-crítica) e as dos outros. Ela pode facilmente criar uma tirania da razão pura. Um império cético.
Este tipo de pensamento, tende a considerar filósofos aqueles que chegam a perceber que objetivamente o conhecimento é nada. Aqueles que se deparam com sua "razão crítica não indutiva", puramente crítica, e que não querem - nunca quiseram - propor conhecimentos. Lançaram-se um dia simplesmente a uma pesquisa lógica, de cunho analítico, com uma intenção de imparcialidade. Há aí o privilégio da via analítica, estrutural da filosofia, do conhecimento por reflexão ponderada entre termos, entre antinomias, entre a dialética do mundo, do dia-a-dia, dos momentos diversos que constituem a vida.Contudo, a filosofia (consciência) também pode - e esta é sua segunda maneira geral de manifestação - usando da imaginação, tecer inumeráveis hipóteses (antecipadas à experiência e ao conceito) sobre qualquer coisa, onde a poética, o livre - imaginar, o juízo hipotético (e não sua suspensão) são as próprias asas, a própria fonte do sentido. Esta é uma forma propositora de filosofia, que anima-se em formular hipóteses. Aí se manifesta a invenção da metafísica. Na necessidade constante de preencher o vazio constatado pela razão crítica, que observa a "falta de um sentido prévio e dado" na vida.
Temos aí duas formas de pensar, dois modos gerais de manifestação da consciência que, contudo, mesclam-se para produzir a ciência, a consciência. Se a primeira é radical, cética e crítica, a segunda é sonhadora, nada crítica e in-consequente; isto é, suas construções não advém de conseqüências lógicas, mas de um tipo de criação conceitual, onde não são necessárias premissas. Colocam-se deliberadamente premissas.
A própria possibilidade de propor conceitos e levá-los adiante está submetida a essas duas naturezas. A estruturação de sentidos por exemplo.Acho que estas são descrições que situam a compreensão de boa parte da estrutura da consciência humana como é hoje praticada.Elas fazem parte de minha tentativa de fornecer um organograma contemporâneo para a filosofia.
C. Veronese