segunda-feira, outubro 15

As pessoas ainda não foram terminadas



Porque nosso DNA é incompleto, inventamos poesia, culinária...


Rubem Alves


As diferenças entre um sábio e um cientista? São muitas e não posso dizer todas. Só algumas. O sábio conhece com a boca, o cientista, com a cabeça. Aquilo que o sábio conhece tem sabor, é comida,conhecimento corporal. O corpo gosta. A palavra "sapio", em latim, quer dizer "eu degusto"... O sábio é um cozinheiro que faz pratos saborosos com o que a vida oferece. O saber do sábio dá alegria, razões paraviver. Já o que o cientista oferece não tem gosto, nãomexe com o corpo, não dá razões para viver. O cientista retruca: "Não tem gosto, mas tem poder"... É verdade. O sábio ensina coisas do amor. O cientista, do poder. Para o cientista, o silêncio é o espaço da ignorância.Nele não mora saber algum; é um vazio que nada diz. Para o sábio o silêncio é o tempo da escuta, quando se ouve uma melodia que faz chorar, como disse Fernando Pessoa num dos seus poemas. Roland Barthes, já velho,confessou que abandonara os saberes faláveis e se dedicava, no seu momento crepuscular, aos sabores inefáveis. Outra diferença é que para ser cientista há de se estudar muito, enquanto para ser sábio não é preciso estudar. Um dos aforismos do Tao-Te-Ching diz o seguinte: "Na busca dos saberes, cada dia alguma coisa é acrescentada. Na busca da sabedoria, cada dia alguma coisa é abandonada". O cientista soma. O sábio subtrai. Riobaldo, ao que me consta, não tinha diploma. E, não obstante, era sábio. Vejam só o que ele disse: "O senhor mire e veja: o mais importante e bonito do mun­do é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando..." É só por causa dessa sabedoria que há educadores. A educação acontece enquanto as pessoas vão mudando, para que não deixem de mudar. Se as pessoas estivessem prontas não haveria lugar para a educação. O educador ajuda os outros a irem mudando no tempo. Eu mesmo já mudei nem sei quantas vezes. As pessoas da minha geração são as que viveram mais tempo, não pelo número de anos contados pelos relógios e calendários, mas pela infinidade de mundos por que passamos num tempo tão curto. Nos meus 74 anos, meu corpo e minha cabeça viajaram do mundo da pedra lascada e da madeira- monjolo, pi­lão, lamparina - até o mundo dos computadores e da internet. Os animais e plantas também mudam, mas tão devagar que não percebemos. Estão prontos. Abelhas, vespas, cobras, formigas, pássaros, aranhas são o que são e fazem o que fazem há milhões de anos. Porque estão prontos, não precisam pensar e não podem ser educados. Sua programação, o tal de DNA, já nasce pronta. Seus corpos já nascem sabendo o que precisam saber paraviver. Conosco aconteceu diferente. Parece que, ao nos criar,o Criador cometeu um erro (ou nos pregou uma peça!): deu-nos um DNA incompleto. E porque nosso DNA é incompleto somos condenados a pensar. Pensar para quê? Para inventar a vida! É por isso, porque nosso DNA é incompleto, que inventamos poesia, culinária, música, ciência, arquitetura, jardins, religiões, esses mundos a que se dá o nome de cultura. Pra isso existem os educadores: para cumprir o dito do Riobaldo... Uma escola é um caldeirão de bruxas que o educador vai mexendo para "desigualizar" as pessoas e fazer outros mundos nascerem...

segunda-feira, outubro 8

O Nascimento da Loucura...



"(...)meu nascimento não foi anunciado por meu choro; assim que vim ao mundo, viram-me sorrir graciosamente para minha mãe, a ninfa Neotetes, a Juventude. Seria um grande erro eu invejar a Júpiter a felicidade de ter sido amamentado por uma cabra, pois as duas ninfas mais graciosas do mundo, Mete, a Embriaguez, filha de Baco, e Apédia, a Ignorância, filha de Pã, foram minhas amas-de-leite. Podeis vê-las aqui entre minhas seguidoras.
A propósitos de minhas seguidoras, convêm que vo-las apresente. A que vos observa li com um ar arrogante é o Amor-Próprio. A outra, com um rosto afávele as mãos prontas para apludir, é a Adulação. Aqui vedes a deusa do Esquecimento, que adormece e parece já esquecida . Mais adiante, a Preguiça tem os braços cruzados e apoiados sobre os cotovelos. Não reconheceis a Volúpia, por suas guirlandas, suas coroas de rosas, e pelas essências deliciosas com que se perfuma? Não notais que a que passeia a toda volta seus olhares imprudentes e incertos? é a Demência. Aquela outra, de pele luzente, corpo abundante e rechonchudo, é a deusa das Delícias. Mas também percebeis dois deuses em meio a essas deusas. Um é Como* e o outro é Morfeu**.
É com o auxilio desses servidores fiéis que submeto a meu império tudo o que existe no universo; é através deles que governo os que governam o mundo."


*Como: Deus grego que preside os prazeres da mesa
** Morfeu: personificação do sono e do sonho