segunda-feira, julho 9

A MAIS NOBRE DAS LINGUAGENS



No coração da pessoa humana o sagrado e o profano disputam o papel de senhores do próprio sentido da existência, daquele significado que torna a angústia fecunda e a dor de viver significativa. Razão e fé se debatem, ora predatórias, ora harmônicas, buscando cada qual ocupar o locus que determina a própria identidade do homem. Esse embate primordial, no qual brota e padece a consciência, não é travado na solidão irremediável dos templos, tampouco na fria lógica dos tubos de ensaio, mas no calor sonoro das sílabas, no estilhaçar das rimas e na fúria silenciosa das verbos que desencadeiam o movimento, ou seja, quando nos referimos à dimensão sagrada da existência, da qual a religião é a grande mestra, não raro, a maior das adversárias, entramos no universo da linguagem e de peculiar potência de expressar algo sem esgotá-lo ou transformar-se nele.
Toda a religião é, antes de tudo, uma forma peculiar de se expressar o mundo, o homem, a natureza e, principalmente, o divino. São as palavras que tecem as ocultas tramas sobre os quais debruça-se a totalidade do existir. Dessa forma, não podemos pensar o divino como algo além de toda a possibilidade lingüística, mesmo se tratando de algo que trafega nas baias do soluto e escapa a toda e qualquer pretensão de ser definido. Todavia, é impossível escapar à constatação de que, mesmo o mais refinado e preciso uso das palavras, podem atingir a essência do sagrado.
A religião, compartilhando do destino da própria linguagem, é radicalmente marcada por esse paradoxo, cujos desdobramentos podem decretar a morte do divino e sua mais completa impossibilidade; jogar-nos na incômoda posição de meros factóides de uma vontade superior e, portanto, soberana; ou, no cenário de uma prática religiosa plena de consciência acerca de sua verdadeira natureza, unir a concretude da vida humana à dinâmica perene e fecundante do sagrado. Tudo isso é uma questão de que tipo de linguagem a religião se propõe a ser e dela se assumir, definitivamente, como tal.
Nada é mais danoso do que uma linguagem corrompida, sobretudo se esta tiver a pretensão de dizer algo acerca das realidades superiores, cujos horizontes fornecem infinitude à existência. A religião pode ser a mais bela, móvel e significativa das linguagens. Todavia, caminha sempre no limites que a impedem de ser a mais opressora e angustiada de todas. Assim, ela pode assumir-se como língua de possessos, tragando para dentro das ilusões mais devastadoras a consciência humana, que dali só pode emergir dilacerada pela insanidade e náufraga na loucura, incapaz de penetrar na imaginação criativa que nos conduz ao sagrado. Também pode assumir-se como linguagem de cegos, vitimada por perseguições, críticas violentas, choques profundos com os sistemas que se outorgam o direito de reger a realidade. Uma linguagem nem sempre apta a escapar dessas tramas secretas nas quais o espírito se vê impedido de alçar vôos maiores e mais necessários.
Entretanto a religião também pode ser palavra declinada pelo amor, em cujos versos move-se livre de amarras e de preconceitos os ser humano. Esta linguagem é o espaço da comunicação integral do homem com Deus, do indivíduo com o outro. É um olhar para dentro de si próprio, e nesse olhar se depara com o divino que lhe habita e que lhe supera.
Muitas palavras são ditas sobre Deus. A religião é basicamente um falar acerca do transcendente, de suas formas, poderes e influência. Dizer a palavra certa e da maneira correta pode ser o pequeno detalhe que separa o homem de sua essência mais radical: apresentar-se como um ser de vastidões, tão pequeno e tão frágil e, ao mesmo tempo, tão imenso e tão forte. Essa é a linguagem do equilíbrio, da justa medida entre o humano e o divino, isto é, são ambos e não são um.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sabes?
Eu creio ainda que além da palavra certa devemos procurar no lugar certo.
Tanto fora como dentro de cada um de nós...
Um belíssimo texto os eu querido.

Emilia Ract