terça-feira, janeiro 8

Filósofos de gabinete, filósofos de jardim


Argumentava que a filosofia se verifica na primazia do interesse cognitivo, na escolha de uma construção, de uma imagem do mundo, num princípio indutivo, auxiliado por várias outras operações lógicas e matemáticas que a teoria da cognição contemporânea tem observado e estudado cada vez mais, fazendo lentamente dilatar e modificar a compreensão do nosso potencial racional e cognitivo.Vamos descobrindo que nossos cálculos, nossas induções e apontamentos, são superáveis em outros momentos do tempo, que nossa lógica evolui cada vez mais (desde que nos esforcemos, é claro) e que somos capazes de detectar erros, aprofundando via atenção, assuntos que não têm um limite estabelecido, conhecido. É a forma como evolui a filosofia, a consciência.Em 1998 eu estudava um detalhe meditando sobre a obra do filósofo francês Alain Badiou, quanto ao "status lógico do procedimento de antecipação de hipóteses (pré-juízos) para gerar o conhecimento". Estava já bastante ciente da quantidade de imaginação, de "livre lance de dados" (pré-lógicos ou a-lógicos), de "invenção fortuita do caminho"- entravam no amálgama do que chamamos conhecimento, na formação e evolução da consciência. Achava naquela época que este era o atual "problema da indução", já enunciado por Popper, quando passamos a induzir pontos, "premissas", que logicamente e a priori não se justificam, não se encontram, não são possíveis.Passava a ver, desde então, que o conhecimento edificava e justificava a pessoalidade, o sujeito, mesmo havendo pontos "exteriores" de apoio. Em resumo, o conhecimento estava ancorado numa vida, e dali vinha sua lógica. Na época, minhas esperanças com a filosofia eram a de ancorar numa atividade lógica.Do que seria capaz essa vida, o sujeito, para amparar suas vontades, ou em outras palavras, sua opinião, sua doxa natural, como ele acha que são as coisas, ou a que sua intuição natural o leva a crer e induzir, é uma conversa extensa. É que Paul Feyerabend chamava de vale-tudo.Tenho descoberto por meio dessas reflexões que a ciência - o estar ciente, a maneira de ver as coisas, de nomear e estruturar o mundo, a consciência praticada pelo indivíduo - é um assunto sujeitual, individual, único. Ainda me interesso pela defesa de um organograma para a filosofia, mas não de um tipo que procura enunciados finais, fixos, sobre a realidade. Pelo contrário, interessa-me a argumentação de um "estatuto" para a filosofia embasado justamente na observação da inexistência de pontos finais, moldes fixos, padrões recorrentes e nivelamentos.Parece que os padronamentos são sempre forçosos.
Esta perspectiva elabora portanto uma noção diversa sobre o conhecimento. Espécie de "construção firme, em terreno incerto", ela parece evoluir negando, estruturar - negando. Nela não se acredita na possibilidade de apontamentos definitivos (juízos de valor) à realidade, mas se mantém a idéia de que tais apontamentos são, na verdade, absurdos perante a lógica-crítica. Se são propostos apontamentos, isso é feito por mecanismos indutivos, pré-lógicos ou a-lógicos. Eles são sempre proposições sujeituais, não-objetivas, ou seja, partem de sujeitos ou indivíduos. A "objetividade" proposta (e para isso temos vários mecanismos como argumentação, contextuação, necessidade, repetição, etc) parece ser sempre meio.Assim, na filosofia, na vida, onde quer que haja conceitos - idéias -, as proposições são sempre sujeituais. Partem do indivíduo.Isto significa ademais, que não existe objetivo pré-concebido na vida. Tudo depende do apontamento. Quem o faz é o sujeito. E ele não é realmente obrigado a fazê-lo. Pode querer por exemplo, permanecer "vazio", cético e crítico. E parece haver maneiras criativas de sê-lo. Um exemplo é Sócrates, que dizia nada saber.
Nietzsche observou: "estamos inclinados a afirmar por princípio, que sem um deixar valer as ficções lógicas, (...) o homem não poderia viver".
Ficções lógicas são imaginações, delírios ensaístas do ser humano, pré-juízos. Constantes antecipações mentais.Nietzsche fora genial ao perceber que sem essas ficções lógicas (vontades, imaginação, inclinações, buscas, sonhos), nossa aventura com o conhecimento, com a vida, não seriam possíveis. Elementos a-lógicos (um tipo de ilusão), sonhos e vontades, parecem compor parte do material indispensável para a edificação e evolução do conhecimento e da consciência, proporcionando-nos seu funcionamento. Sem tais elementos, é mesmo difícil imaginar a vida. As ficções são altamente individuais.
Considero portanto, que a consciência se constitui através de duas maneiras, geralmente consideradas. Ela pode manifestar-se como consciência crítica, cética ou analítica, em geral anti-dogmática, sendo a epoché - suspensão de juízos de valor - o máximo a que conseguimos chegar com este tipo de investida. (Eu costumava chamar isso de "lógica pura").Segundo esta perspectiva, quem quer que se aventure a pronunciar algo estará absolutamente em erro, visto que a estruturação cognitiva sempre está mesclada de pré-juízos, vontades, antecipações, forçamentos.Este tipo de filosofia todavia, parece empreender seu conhecimento por vigília, por negação e reprimenda aos saberes poéticos, tornando-se ocupada em vigiar suas próprias construções (auto-crítica) e as dos outros. Ela pode facilmente criar uma tirania da razão pura. Um império cético.
Este tipo de pensamento, tende a considerar filósofos aqueles que chegam a perceber que objetivamente o conhecimento é nada. Aqueles que se deparam com sua "razão crítica não indutiva", puramente crítica, e que não querem - nunca quiseram - propor conhecimentos. Lançaram-se um dia simplesmente a uma pesquisa lógica, de cunho analítico, com uma intenção de imparcialidade. Há aí o privilégio da via analítica, estrutural da filosofia, do conhecimento por reflexão ponderada entre termos, entre antinomias, entre a dialética do mundo, do dia-a-dia, dos momentos diversos que constituem a vida.Contudo, a filosofia (consciência) também pode - e esta é sua segunda maneira geral de manifestação - usando da imaginação, tecer inumeráveis hipóteses (antecipadas à experiência e ao conceito) sobre qualquer coisa, onde a poética, o livre - imaginar, o juízo hipotético (e não sua suspensão) são as próprias asas, a própria fonte do sentido. Esta é uma forma propositora de filosofia, que anima-se em formular hipóteses. Aí se manifesta a invenção da metafísica. Na necessidade constante de preencher o vazio constatado pela razão crítica, que observa a "falta de um sentido prévio e dado" na vida.
Temos aí duas formas de pensar, dois modos gerais de manifestação da consciência que, contudo, mesclam-se para produzir a ciência, a consciência. Se a primeira é radical, cética e crítica, a segunda é sonhadora, nada crítica e in-consequente; isto é, suas construções não advém de conseqüências lógicas, mas de um tipo de criação conceitual, onde não são necessárias premissas. Colocam-se deliberadamente premissas.
A própria possibilidade de propor conceitos e levá-los adiante está submetida a essas duas naturezas. A estruturação de sentidos por exemplo.Acho que estas são descrições que situam a compreensão de boa parte da estrutura da consciência humana como é hoje praticada.Elas fazem parte de minha tentativa de fornecer um organograma contemporâneo para a filosofia.
C. Veronese

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