sábado, setembro 8

Nelson e Filosofia, por Luciano Torcione


Em 1988 as obras de cronicas e memórias eram dificeis de encontrar nos sebos, e fui ler na biblioteca nacional, enquanto estudava filosofia no largo de são francisco. E no reacionário, em a cabra vadia, no óbvio ululante, encontrei sabedoria relacionável, por um espírito independente, aos temas maiores e menores da filosofia e seus autores.
Nas memórias transparece a erudição, e o que pretendo destacar, a sabedoria aplicada, o uso não meramente citacional, a capacidade de absorver e dialogar com aqueles grandes nomes da história da literatura. De tal modo que um filósofo demasiado acadêmico não será capaz de ver esta sabedoria e este estilo aplicados e absorvidos; e, pior, não se sentirá autorizado a reconhece-los em situações aplicadas e cronificadas, ambientadas. Somente um filósofo seguro e capaz de leitura prática e tambem de autoria, poderá reconhecer para todos os outros, sem autoridade e sem autoria, o que sente-se ao ler Nelson.
Se permitem, refiro três autores: Scott Fitzgerald, Nietzsche e Parmênides. Este último dá o âmbito - há dois tipos de verdade: a que está no que é dito, no que se diz; e a que sabemos com o coração. Nelson ouvia sobremaneira, e nos garantia acesso direto ao coração. Passando por riso nervoso, gargalhada, olhos cheios d`água.
Ainda como dificuldade para o intelectual, para reconhecê-lo como filósofo, acrescento em seguida Scott Fitzgerald: em carta para a filha de doze anos, Scottie (depois jornalista), prescreve leitura mensal de um clássico da literatura, ao longo do ano: "como foi com Dickens este mês? - a menos que absorva o estilo, fará apenas citações deslavada (watered-down)". Assim Nelson absorveu os grandes, não os cita, e nos transmite e nos transfere a eles, ampliando exponencialmente a ressonância de suas notas.
Terceiro, expondo ainda esta grandeza de Nelson filósofo e as dificuldades de se ver inicialmente isso, acrescentaria Nietzsche: a psicologia esteve antes e sempre nos autores clássicos - nos maiores, e nos menores. Reconhecê-los e inclui-los no pensamento filosófico é ainda uma necessidade, exigência recíproca da arte ao pensamento; e, uma agudeza para o psicológico, uma capacidade de dizer em poucas linhas o que os outros demoram em páginas, esta atenção ao valor e ao desejo, são as características que identificam Nietzsche a Nelson. E o próprio Nelson: "Se me perguntarem sobre o que fiz de marcante (...) sim, destaquei o óbvio"(Nelson, em O Óbvio ululante).
O óbvio como categoria de pensamento, conceito criado por Nelson, é a atividade própria do filósofo segundo Deleuze: fabricar conceitos. O óbvio, por outro lado, no pensamento, liga-se diretamente à mobilidade psíquica das meditações dinâmicas, presentes no budismo theravada (parente menos badalado do budismo zen, cuja meditação ocorre em tema fixo, e que nos lega parte da imagem associável ao que seja pensamento oriental). Do óbvio espalham e enraizam-se as implicitudes e os assentimentos (noção filosófica estóica) e os assentamentos, que subestruturam os valores e as emocionabilidades abaladoras. Nova grandeza - e nova dificuldade - e inaugurabilidade.
Assim como Sérgio Britto, em entrevista, aguarda uma fantástica ampliação de Nelson, assim esperamos quanto à filosofia - ou pensamento - em Nelson Rodrigues.


Luciano Torcione é leitor do site Nelson Rodrigues e defende a importância da discussão de filosofia

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